Medo e silêncio: clima de incerteza ronda a vida dos jogadores brasileiros que atuam na China

bueno 030220Quem está no país, treina e prefere não falar. Quem saiu, treina e não sabe como vai ser quando voltar. Surto de coronavírus adia torneios e mexe com a rotina de vários atletas

Millene, de 25 anos, foi artilheira do Campeonato Brasileiro Feminino de 2019 com 19 gols. Em 2020, foi contratada pelo Wuhan Xinjiyuan, da China. Chegou ao país no dia 16 de janeiro. Passou quase duas semanas sem sair do seu apartamento. Conseguiu na noite de sábado.

Rafael Silva, de 27 anos, é atacante. Começou nas categorias de base do Corinthians e se profissionalizou no Coritiba. Passou pela Suíça e Japão, até chegar ao Wuhan Zall, em 2018. Fez 31 gols em 38 jogos pela equipe até agora. Estava em Guangzhou, no início da pré-temporada de 2020. Foi para a Espanha no Ano Novo Chinês. E não saiu mais. E não sabe quando sairá.

“É complicado. Vamos ficar na Espanha até o dia 18. E depois, ninguém sabe como vai ser”, afirmou Rafael.

Ex-atacante da seleção brasileira, Hulk está no Shanghai SIPG desde 2016. Entrou em campo na vitória por 3 a 0 de sua equipe contra o Buriram United, da Tailândia, pela Liga dos Campeões da Ásia no último dia 28, em Xangai. Com portões fechados. Sai de casa só para treinar. Tem cozinheiros que preparam todas as suas refeições em casa. E evita falar sobre a situação atual no país.

Os três são apenas alguns dos vários jogadores brasileiros que atuam na China e têm suas rotinas e futuros afetados pela epidemia de coronavírus. São 30 atletas com contrato em vigência por clubes da primeira divisão do país e 12 na Segundona, apenas no futebol masculino.

Outros, desistiram de jogar no país neste ano quando a doença se espalhou. Casos da zagueira Camila Martins, do Shanghai Shenhua, e do zagueiro Naldo, que rescindiu com o Monaco recentemente. Com longa passagem pelo futebol alemão, o defensor, de 37 anos, chegou a desembarcar no país para acertar com um clube de Qingdao no início de janeiro. Mas desistiu.

– Fomos pra lá, faltavam apenas alguns detalhes, mas surgiu a epidemia. Quase ficamos presos lá, mas conseguimos sair – revela.

Ricardo Bueno, atacante do time tailandês que perdeu para o Shanghai SIPG, relatou todo o protocolo que tiveram que seguir para a viagem a Xangai. E admitiu o receio.

– Realmente assustou bastante, inclusive na viagem e durante, ficamos de máscara. Inclusive mesmo no hotel que nós ficamos, antes de a gente chegar, eles têm um aparelho que coloca na nossa testa e faz uma medição de febre – disse o ex-jogador do Ceará, Atlético-MG e Palmeiras.

“Viajamos fiemos o jogo, tomamos todas as precauções e notamos que a cidade de Xangai está bem parada, pouco movimento. Ninguém quer se arriscar saindo nas ruas para não ser infectado”, revelou Ricardo.

O surto já matou 304 pessoas na China, em último balanço divulgado pela TV estatal chinesa. São 14.380 casos confirmados, pouco mais de 9 mil apenas na província de Hubei, onde fica Wuhan, cidade dos clubes de Millene e Rafael Silva.

As competições esportivas estão paralisadas no país. A Superliga Chinesa, marcada para ter início no próximo dia 22, não tem data para começar. Apenas quatro clubes têm calendário: Guangzhou Evergrande, Beijing Guoan, Shanghai Shenghua e Shanghai SIPG. Todos pela Liga dos Campeões da Ásia. Mas terão que mandar seus jogos em solo estrangeiro.

A Federação Paulista de Futebol (FPF) e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) entraram em contato com o Ministério da Cidadania e pediram ajuda do governo brasileiro para retirar os atletas da China. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro declarou que a operação para retirada dos brasileiros do país “custa caro”.

Jogadores preferem silêncio

A reportagem tentou entrar em contato com vários jogadores que atuam no futebol chinês. Muitos preferem não falar. Outros alegam que seus clubes orientam a não comentar sobre o assunto, que é delicado em um país tão controlado como a China.

O volante Paulinho e o atacante Talisca, ambos do Guangzhou Evergrande, estão na cidade, mas em uma área afastada do centro. Estão treinando para a estreia na Liga dos Campeões da Ásia. O Beijing Guoan, de Renato Augusto, treina na Espanha.

Também em Guangzhou, o Daegu, da Coreia do Sul, faria sua pré-temporada. Mas o time, dos brasileiros Edgar, Rildo, Cesinha e Dário Frederico, pouco ficou na China. Assim que o surto piorou, o clube cancelou a programação e retornou a terras sul-coreanas.

Hulk também não quis dar entrevista. No entanto, ressaltou, por meio de sua assessoria de imprensa, que confia no trabalho dos médicos chineses. Seu companheiro no Shanghai SIPG, Oscar, também não quis falar. Nas redes sociais, gravou, em mandarim, um vídeo agradecendo o trabalho dos médicos.

O Wuhan Zall, time que fica na principal cidade da região onde a epidemia se espalhou, tem os atacantes brasileiros Rafael Silva e Leo Baptistão. Leo passou as férias no Brasil e ainda se recuperava de lesão. Voltaria para a China para dar sequência ao tratamento, mas seu voo foi cancelado. E permaneceu até que a situação seja resolvida.

Rafael está em Sevilha, na Espanha, com a delegação do time, que só conseguiu chegar no país na última quarta-feira. Ele revela o drama de companheiros que têm familiares em Wuhan.

– Eles estão preocupados, mas procurei não perguntar. Os familiares ficaram e só têm contato por telefone. Dá para ver que estão abalados.

O futuro e o medo de voltar

No último dia da janela de transferências de inverno das principais ligas da Europa, o atacante belga Yannick Carrasco foi emprestado pelo Dalian Yifang para o Atlético de Madrid. O atacante nigeriano Odion Ighalo chegou ao Manchester United emprestado pelo Shanghai Shenhua.

Essa é uma saída para alguns dos estrangeiros que atuam na liga do país. Empresários tentam articular para facilitar uma transferência e evitar que os jogadores fiquem tanto tempo parado. Rafael Silva não vê tanto problema no período de inatividade. E não cogita deixar o futebol chinês. Ele teme apenas uma coisa: seu receio quando chegar a hora de voltar.

– É complicado. Eu fico pensando mais em quando isso vai se resolver. E no dia que falarem que pode voltar, como vou me sentir. Minha família está muito preocupada. Eu também – comentou Rafael.

Atacante do Chongqing Dongdai, Alan Kardec renovou seu contrato com o clube até dezembro de 2022 neste fim de semana. Ele evitou falar sobre a crise do coronavírus. Em declarações enviadas pela assessoria de imprensa, disse estar feliz com a renovação e a vida na China.

– Estou muito adaptado à China, assim como minha família, e ficamos felizes com essa renovação de contrato. Era o que queríamos, poder continuar o trabalho que vem sendo desenvolvido aqui – declarou.

Na expectativa para que consiga ter sua rotina de volta ao normal, Rafael Silva espera resume seu sentimento. É uma angústia que não terá fim nem quando a doença for controlada.

“Afinal, sou eu que vou ter que voltar. E antes de voltar, vou pensar: ‘será que está tudo bem?’, ‘será que está seguro?’. É difícil”, confessou.

Assista ao video clicando AQUI.

Fonte: globoesporte.globo.com