Joia do Santa Cruz supera casa perdida, fome e preconceito para virar promessa do clube

andre 030220Volante André penou com obstáculos, mas agora, aos 19 anos, vive iminência de jogar pelo time profissional - novo passo para seu ambicioso e otimista projeto de vida

André tinha as mãos ainda ensanguentadas. A dor que sentia naquela noite chuvosa, porém, não era meramente física. Os socos na parede de casa que lhe machucaram eram o reflexo de uma angústia mais profunda. Em um só mês, abril de 2013, ele perdera duas avós e havia sido testemunha de um deslizamento de terras que devastou a comunidade onde nasceu e foi criado - São Luís, zona sul de São Paulo. Aquelas não eram as primeiras dificuldades que o garoto de 13 anos enfrentava. Era a gota que transborda o copo. A vida castigou André a ponto de dobrá-lo. Por isso, numa viela estreita, água de esgoto a cobrir-lhe os calcanhares, questionou a própria fé. Pegou o Deus que aprendeu a amar pelo colarinho.

- Por que os filhinhos de papai de olho azul têm tudo e a gente aqui da favela sofre tanto? - gritava.

Hoje aos 19 anos, André ainda não encontrou todas as respostas que procura. Moldado duramente pela vida, o volante do Santa Cruz enfrentou muita coisa: passou fome, sofreu preconceito, viu brigas na família e foi ameaçado de morte por um irmão viciado em drogas.

Sobreviveu a tudo isso. Quando completou a maioridade, postou desafiador em sua rede social.

"Essa vai para quem achava que eu não ia passar dos 18 anos."
Volante do time profissional do Santa Cruz, ele tem orgulho da história que está construindo - e sabe que o passado difícil deixou uma herança ambivalente: serviu de combustível para seu crescimento como jogador, mas lhe legou demônios que ainda não exorcizou por completo.

- A dificuldade moldou meu caráter. Eu sou o que sou hoje por conta da minha história de vida.

Desafios desde cedo

Quem é André? A resposta fácil é que ele é volante do Santa Cruz, clube pernambucano no qual chegou em 2019 e que o vê como uma de suas principais promessas. Deve fazer sua estreia no time de cima nos próximos jogos. Mas, sob a superfície, há muito mais camadas.

André é um garoto, como tantos no Brasil, que nasceu e cresceu em situação de risco. Natural da comunidade São Luís, colada ao Capão Redondo, uma das mais perigosas de São Paulo, ele lembra da infância a princípio com um sorriso no rosto.

"Eu era menino de favela mesmo, de andar descalço. Ficava muito tempo na rua, roubava manga no pé, brincava."
Seus pais eram religiosos. Frequentavam a igreja evangélica da região - para onde levavam um André engravatado aos cultos semanais. Para sustentar a grande família, com sete filhos, seu Antônio e dona Marina dependiam de "bicos": faxina, limpeza, segurança.

Quando havia serviço, havia o básico em casa. Quando o trabalho rareava, faltava até comida.

Houve ocasiões em que a única refeição do dia era dividida entre os filhos - mas acabava antes de chegar a vez da mãe, que só aceitava comer depois de todos

"Vi minha mãe várias vezes misturar café com farinha para jantar. Não alimentava nada. Era só pra encher a barriga. Aquilo me corroía por dentro."
À falta de comida, acrescentavam-se outros problemas. Um dos irmãos, o mais velho, era usuário de drogas. Movido pelo vício e pelo ciúme, ameaçava André e dona Marina - culpando-os pelo fim do casamento do pai com sua própria mãe.

Certa vez, às 11h da noite, André foi acordado aos gritos. O irmão estava em cima da cama da mãe com uma faca, ameaçando matá-la. Antes, o mesmo irmão lhe havia perseguido pela favela com um tijolo nas mãos - cujo destino era sua cabeça.

Há quem diga que o golpe do martelo destrói o vidro, mas torna mais rígido o aço. Diante de todas as dificuldades, André decidiu ser aço.

- Desde cedo, eu sentia isso. Eu queria ajudar meus pais. Sempre tive isso comigo, de ajudar as pessoas.

Até hoje, André mantém isso em mente. No seu celular, há três lembretes permanentes.

Tirar minha mãe e meu pai da favela
Ajudar minha quebrada
Instituto André Lima
O tráfico parecia o caminho mais próximo para realizar os desejos: melhorar a vida dos pais, ajudar a quebrada e fazer, no futuro, um espaço de lazer e ensino na favela São Luiz.

Foi difícil - André admite - não ceder aos sedutores convites do crime, seu vizinho de porta.

- Na frente da minha casa tinha uma biqueira (boca de fumo). Eles escondiam drogas nos tijolos da minha casa.

Ainda garoto, André até ajudava eventualmente avisando aos traficantes quando a polícia se aproximava. Mas ele garante que não ultrapassou essa linha - embora tenha pensado em cruzá-la nos momentos de maior desespero.

A base religiosa e a atenção permanente dos pais ajudaram o menino a se manter longe do crime, mas a bola também teve papel determinante.

A bola

No início, o futebol era uma paixão secreta - compartilhada apenas com Robson, um de seus irmãos. Homem de couro curtido pelo tempo, o pai não queria nem ouvir falar do assunto.

- Ele dizia que era coisa de vagabundo e preguiçoso. Não nos deixava nem ver na televisão.

Mas André não era de desistir fácil. Sob a autorização conivente da mãe, começou a frequentar a escolinha do bairro. Ali pelos 10 anos, nunca havia tido contato direito com a bola, mas descobriu um talento oculto em poucas semanas.

- No começo, eu era muito ruim. Mas em uns 15 dias comecei a pegar o jeito e me destacar.

O moleque viu ali uma oportunidade para concretizar o que já sonhava há algum tempo. Mesmo a contragosto de seu Antônio - que surrou o filho algumas vezes após flagrá-lo em peladas.

A motivação de André era diferente. Para muitos, o futebol era um passatempo. Para ele, a única chance que a vida ainda não lhe negara.

Por isso, trabalhou mais do que todo mundo. Roubou um cone de um campo perto de casa e levou para a laje de casa - para onde furtivamente se esgueirava às tardes, a fim de trabalhar fundamentos.

Sozinho em casa, treinava. Perna direita, esquerda, chapéu, condução, drible.

"Eu queria ser melhor que os outros. Por isso que treinei tanto isso de bater com as duas pernas. Hoje sou ambidestro. E quando todo mundo for ambidestro, eu vou trabalhar e inventar alguma coisa para tentar ficar à frente."
Sua disciplina férrea - incomum em garotos tão jovens - começou a chamar atenção. Da escolinha da favela, passou para o time do bairro mais próximo. Da escolinha do bairro, foi para equipes mais competitivas. Encontrou o treinador Marcos Roberto, a quem considera um pai, e evoluiu como jogador.

Raiva contida

A trajetória ascendente como atleta contrasta com um caminho mais acidentado na vida pessoal. À medida que foi se tornando adolescente, André cultivou uma revolta que culminou no episódio narrado no início do texto: os socos na parede, a dúvida da fé.

"Eu tinha uma raiva muito grande em mim. Eu sofria tanto que via aquilo como uma injustiça. Eu passava fome, não conseguia estudar porque não tinha forças de manhã, ia para os treinos pulando catraca e ainda sofria preconceito, enquanto outros iam pra escola, tinham todas as oportunidades."
O preconceito doía quase tanto quanto a fome. A pele escura fazia polícias revistarem suas bolsas com frequência alarmante e pessoas de bairro nobre atravessarem a rua para não dar de frente com ele.

- Eu tomava mais sol que hoje e era bem mais escuro. Então ouvia isso toda hora: "Esse negrinho", "esse preto"…

André respondia a isso com raiva. Ficou agressivo, brigava constantemente, "odiava playboy", como admite. O mundo, afinal, era um lugar injusto.

A passagem pelo Internacional, quando tinha 17 anos, foi importante para ele começar a entender a raiva que não se dissipou por completo.

Destaque pelo AD Guarulhos na Copa São Paulo de Júnior de 2017, André acertou com o time de Porto Alegre. Ao chegar, como os outros, foi submetido a um teste: como era a história de vida do atleta? Ele tinha medo de algo ruim acontecer no futuro? Algum evento do passado o marcava negativamente?

Suas respostas fizeram a psicóloga do clube erguer a sobrancelha e convocá-lo à sua sala.

- Ela disse que minhas respostas eram preocupantes e que eu tinha um nível de ansiedade muito alto.

Acompanhado por uma profissional pela primeira vez, André começou a processar tudo que lhe havia passado.

"Ela foi uma heroína. Com ela, eu aprendi a me entender melhor e usar melhor aquele sentimento que eu tinha. Apesar de não ter tido muita chance no time, eu cresci como profissional e pessoa no Inter. Ali eu virei homem."

Embora admita que ainda não tem maturidade para entender tudo o que viveu, André tenta deixar o estilo explosivo de lado e crescer como jogador.

O volante chegou ao Santa Cruz como contrapeso na negociação do atacante Guilherme Queiroz. Enfrentou desconfiança no clube, mas convenceu de que tinha potencial.

Subiu degraus. Jogou Pernambucano e Copa do Nordeste sub-20. Entrou no Brasileiro de Aspirantes e ajudou o time a ganhar a Copa Pernambuco.

Na Copinha, como capitão, destacou-se na boa campanha do time - que pela primeira vez chegou à terceira fase da competição.

Por isso, André subiu aos profissionais e foi relacionado pela primeira vez no Santa Cruz em jogo no sábado passado, contra o Bahia. Chorou ao telefone com a mãe - que também não conteve as lágrimas do outro lado da linha.

"Falei para ela que estava muito feliz, mas que não ia parar aqui. Isso é só o começo."
É assim que André vai construindo sua história, cujos objetivos finais são tirar os pais da favela, ajudar sua quebrada e construir o instituto André Lima.

Por quê?

- Eu sou uma exceção. Na minha favela e em todas as outras, a maioria não consegue. Ajudar as pessoas é uma missão de vida. Como diz a bíblia: ame ao próximo como a si mesmo - ele diz, reconciliado com a religião e com a força de quem já superou desafios maiores do que muita gente é capaz de suportar.

Fonte: globoesporte.globo.com